Para uma vida de merda
nasci em 1930
na Rua dos Prazeres
Nas tábuas velhas do assoalho
por onde me arrastei
conheci baratas formigas carregando espadas
caranguejeiras
que nada me ensinaram
exceto o terror
Em frente ao murro negro do quintal
as galinhas ciscavam, o girassol
gritava asfixiado
longe longe do mar
(longe do amor)
E no entanto o mar jazia perto
detrás de mirantes e palmeiras
embrulhado em seu barulho azul
E as tardes sonoras
rolavam claras sobre nossos telhados
sobre nossas vidas.
E do meu quarto
eu ouvia o século XX
farfalhando nas árvores da quinta.
Depois me suspenderam pela gola
me esfregaram na lama
me chutaram os colhões
e me soltaram zonzo
em plena capital do país
sem sequer uma arma na mão.
Poema obsceno
Façam a festa
cantem e dancem
que eu faço o poema duro
o poema-murro
sujo
como a miséria brasileira
Não se detenham:
façam a festa
Bethânia MartinhoClementina
Estação Primeira de Mangueira Salgueiro
gente de Vila Isabel e Madureira
todos
façam
a nossa festa
enquanto eu soco este pilão
este surdo
poema
que não toca no rádio
que o povo não cantará
(mas que nasce dele)
Não se prestará a análises estruturalistas
Não entrará nas antologias oficiais
Obsceno
como o salário de um trabalhador aposentado
o poema
terá o destino dos que habitam o lado escuro do país
- e espreitam.
> poemas do NA VERTIGEM DO DIA, de 1980. Um dos livros de poemas de Ferreira Gullar que mais me comovem.
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