quarta-feira, 22 de junho de 2011

poemas de ferreira gullar

Primeiros Anos


Para uma vida de merda
nasci em 1930
na Rua dos Prazeres

Nas tábuas velhas do assoalho
por onde me arrastei
conheci baratas formigas carregando espadas
caranguejeiras
                     que nada me ensinaram
exceto o terror

Em frente ao murro negro do quintal
as galinhas ciscavam, o girassol
gritava asfixiado
           longe longe do mar
           (longe do amor)

E no entanto o mar jazia perto
detrás de mirantes e palmeiras
embrulhado em seu barulho azul

E as tardes sonoras
rolavam claras sobre nossos telhados
sobre nossas vidas.
                           E do meu quarto
eu ouvia o século XX
farfalhando nas árvores da quinta.

Depois me suspenderam pela gola
me esfregaram na lama
me chutaram os colhões
e me soltaram zonzo
em plena capital do país
sem sequer uma arma na mão.



Poema obsceno



       Façam a festa
                cantem e dancem
       que eu faço o poema duro
                                      o poema-murro
                                      sujo
                                      como a miséria brasileira
       Não se detenham:
       façam a festa
                            Bethânia Martinho
                            Clementina
       Estação Primeira de Mangueira Salgueiro
       gente de Vila Isabel e Madureira
                                                     todos
                                                     façam
       a nossa festa
enquanto eu soco este pilão
                                     este surdo
                                          poema
que não toca no rádio
que o povo não cantará
(mas que nasce dele)
Não se prestará a análises estruturalistas
Não entrará nas antologias oficiais
         Obsceno
como o salário de um trabalhador aposentado
         o poema
terá o destino dos que habitam o lado escuro do país
         - e espreitam.


> poemas do NA VERTIGEM DO DIA, de 1980. Um dos livros de poemas de Ferreira Gullar que mais me comovem.

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